sábado, 28 de abril de 2012

Dias


A vida, amigo, ou melhor, a minha vida, amigo, se divide em duas partes. Sempre. A parte boa e a não tão boa. O branco e o preto. O dia e a noite. Tudo duplo e por causa dessa duplicidade creio sempre que nada que seja bom venha sozinho. Sou chata, sabe. Sou do tipo que responde um "Por Que" depois de um “Bom Dia”. Por que bom dia? Por que simplesmente você me dá um bom dia sorrindo depois de ignorar tantas noites de existência? Pega o seu bom dia e enfia. Bom dia por que? Por que Deus, por que poesia, por que mundo, por que shampoo Elseve dos diabos que não resolve meu problema?
Mas também tem dia que está tudo lindo. Está passando A Praça é Nossa e está tudo lindo. Caiu um prédio no Oriente mas seu cabelo está bonito, então o dia é lindo. Você emagreceu dois quilos. Você achou dinheiro na jaqueta que já estava guardada há tempos. A calça jeans entrou. Beleza de dia.
Enfim. Dias bons e dias não tão bons. Dias de beijar na chuva e dias de xingar a chuva. Aliás, tai. Existem dias de beijar e dias de chover. Sabe, metaforicamente. Dias de amor e dias nublados. Muitos dias nublados. Muitos (?)(!)(...)(;)(,)(.) dias de amor.

Mas mulher, amigo, é obra do capeta. Entre tantas definições, poetices, sentimentalidades, mulherzices, mesquinhices, maluquices, mosca-mortices a mulher rebola. A mulher rebola, se contorce, se reinventa, reinventa o mundo, muda todas as regras do universo e se dá ao luxo de mudar a ordem das coisas. E cria o dia-do-tanto-faz. Eu queria Coca-Cola, mas Fanta tá bom também. Eu queria ouvir uma música bonita, eu queria dançar um bom tango, eu queria ser importante, eu queria uma foto minha na sua mesa de cabeceira. Mas não estar aí tá bom também. Amar é bom e reciprocidade eu gosto. Mas se não tiver hoje serve amanhã. Dias bons, outros não-tão-bons fazem parte disso que a gente chama de vida-civilizada. Mas amor é civilizado?
Importa-me o amor, esse que queima, lateja e depois bate doendo.
E depois amorna, e depois se esvai, e some uns dias.
Dias que a gente nem dá bom dia.

Aí você chora, come uns montes, vomita uns bocados.
E ri, louca, maluca, desvairada: o amor é isso aí. Eu amo tanto.
Pega esse bom dia e enfia, não! Vem cá, me dá um beijo, está chovendo aqui dentro.
O dia está bom, vamos amar, voar ao infinito. Eu te amo, e às vezes não. Mentira.
Ou não tão bom, me abre esse Cheetos. Me esquece. Vai dormir.
Hoje é dia de José? Ou de Maria?

Tanto faz.

sexta-feira, 3 de junho de 2011

2 de Junho

Amigos. Daí morte cruel e fria aos sofrimentos não-louváveis.

             Tinha pressa. Em alguns dias eu me apresentaria numa cerimônia literária, precisava estar bem apresentada, ela queria me fazer um casaco azul. O evento era no dia de seu aniversário, ela não poderia ir, mas tenho certeza que seu coração não cabia no peito, de tanto orgulho.
              Entre linhas, botões e retalhos eu experimentava, passo a passo, a sua grande obra prima. Não era a última, pois antes de morrer ela ainda me fez o vestido de noiva, mas era a última obra que fazia sem o terror da doença que a matava. Ela sempre tinha pressa, suas costuras tinham dia e hora para estarem prontas, aprendeu a ser amiga e inimiga do relógio. Com tanta preocupação desnecessária, quase impossível viver. Ela apenas sobrevivia, e era exatamente nisso que eu estava pensando, quando ela quis que eu provasse novamente o casaco. Era a manhã do primeiro dia.
             Na manhã do segundo dia venceu a conta da loja de sapatos. Honesta que só ela, teve que inventar uns malabarismos de última hora pra não atrasar a conta, o dinheiro nunca dava. Ela não era vaidosa, só queria andar com a cabeça erguida, de quem conseguiu enfrentar a vida mesmo sendo mulher sem trabalho fixo e com duas marmanjinhas pra criar. Não tinha marido há algum tempo, meu pai, pobre mortal, não sabia viver com a responsabilidade de uma família nos seus calcanhares. Estranhei quando nessa tarde ela me pediu um batom e é com os olhos cheios de lágrimas que lembro disso agora.
             Dia seguinte ela disse que estava saindo com um amigo da família. Fiquei feliz, eu mais do que ninguém queria aquilo, desesperadamente. Nunca esquecerei dela, na frente do espelho, passando o batom marrom sem marca, vestindo uma blusinha amarela feita com suas próprias mãos. Nunca esquecerei que era eu quem pintava os cabelos dela e sempre acabava manchando alguma de suas blusas. É engraçado como tem coisas que a gente nunca esquece, mas que também nunca consegue lembrar, de tanto que dói.
             No quarto dia, sabendo então do seu segredinho amoroso, entendi o porquê dela ter comprado aquele sapato. Queria estar bonita. Nesse dia ela sentiu umas dores fortes, mesmo assim continuou a costurar o casaco, fez os retoques finais, eu fui pra cerimônia. Preocupava-me com ela, mas hoje vejo o quanto eu me prendia a coisas banais, sem aproveitá-la como deveria. Você, que está me lendo aí, do outro lado da tela, talvez não me conheça ou talvez me conheça mais do eu mesma julgo conhecer. Mas posso afirmar que sua vida é movida à base de sonho, não é? Mesmo os mais distantes, os mais aflitos... são sonhos. Sinto dizer que meu maior sonho, hoje, é acordar amanhã de manhã e ouvir a voz dela. Sentir seu cheiro, beber seu café. Poder sorrir e dizer que tive um sonho louco essa noite, que no sonho ela tinha morrido e então eu nunca mais veria seus olhos tão doces. Sentar na cadeira, do lado da máquina de costuras e conversar, conversar muito, conversar bastante, até doer à garganta, até a boca ficar dormente, até os vizinhos reclamarem. Ouvir sua voz até a cabeça doer de tanta felicidade, mas não vai acontecer. Então eu vou à Leader Magazine, compro uma roupa nova, saio à rua como se tudo estivesse bem, mas nada está bem. Eu vivo pela metade, desde o dia em que o corpo dela morreu.
              No quinto dia o corpo dela doeu tanto que não conseguiu levantar-se da cama. Corre hospital, posto de saúde, farmácia. E dá-lhe médico grosso, enfermeira estúpida, injeção na bunda. Nada curava a dor dela. Nada a fazia sair da cama, ela nunca mais andou. Ficou até meio morta, um tempo, num hospital longe de casa. E quando voltou pra casa, parecia criança voltando do terrível primeiro dia de aula. Quando falo de sofrimentos não-louváveis, falo dos dias em que eu me preocupei mais com minhas noites mal-dormidas do que com os gemidos do quarto ao lado. Falo das pessoas que reclamam das calças sujas de lama, quando tudo o que ela queria era pisar na lama uma vez mais, ao menos. Falo das brigas bestas de namorados imaturos, quando lembro dela pedindo meu batom emprestado, porque ia sair pra namorar, viver. Falo de mim mesma, escrevendo essas coisas tristes, quando tem tanta gente por aí com história mais triste, sem ter nem mais força pra contar.
              Dá para perceber que os dias são simbólicos, certo? É só uma maneira de organizar essa novela mexicana que o obrigo a ler, caro leitor. Meu choro está exatamente nas entrelinhas que guardo em mim, nas palavras que eu não disse, nos agrados que eu não fiz, na rima que não sai no poema. O “sexto” dia é tão cheio de dor que estou em dúvida se conto ou não.
              No sexto dia eu a tratei na boca, como criança. E dei banho. E limpei bumbum. E contei história. E chorei igual condenada. E se fosse hoje faria de novo, mas faria melhor e sempre com sorriso no rosto. Porque a imagem que ela levou de mim é a de uma mulher triste, cansada e sem esperança.
              O sétimo dia, 2 de junho, não amanheceu pra ela.

              Estes sete dias, na verdade, foram meses de dor e coragem. Luta e perseverança, fé e mais todos os sentimentos bonitos que a gente lê nos cartões de Natal. Ainda hoje não está pago o sapato. Sei que ela deve estar se revirando no túmulo, onde já se viu deixar a mãe inadimplente, mas algo me faz não conseguir entrar naquela loja. Gosto de imaginar que ela ainda vai voltar, costurar uns vestidos e pagar a maldita conta. Aliás, me agarro a qualquer motivo pra imaginar que ela vai voltar. Eu ainda choro toda noite, antes de dormir. Ainda ouço seus gemidos, ainda a vejo sentindo sede e vai ser sempre assim. Gosto de vê-la com o batom que lhe emprestei e com a camisa manchada de tinta, que eu dei a ela, no dia das mães.
              E você, amigo, você bem sabe que algum desses 365 dias do ano também não amanhecerá pra alguém que você ama. Então pra que brigar pelos 15 minutos de atraso? Por que esconder da mãe as incertezas colhidas dia-a-dia? Nunca se sabe quem está partindo. Nunca se sabe quem ficará para contar história triste, no final das contas.
              Minha dor, hoje, o oitavo dia, é a de quem espera com ansiedade um dia que nem mesmo sabe se vai chegar. Dor de quem está louca pra chegar em casa, correr pro quarto e dar um beijo na mamãe.

              †Ana Maria da Silva
              07/07/1957 – 01/06/2007

sexta-feira, 6 de maio de 2011

Ano-Bom

Os homens rezam à beira do cais.
E rezam as mães dos homens
Inda moças
À beira do cais.
A água morna
Varre para longe
Suas preces tristes.

Iemanjá não ouve.

Eles carregam andores azuis
Cheios de flores
Cheios de promessas.
Pedidos de amor
Destas moças de vestes brancas
E calcinhas vermelhas, Deus!
E corações negros.
Iemanjá não vê as cores brilhando
Na beira deste cais.

O que vejo nesta noite de janeiro
Não é praia nem mar:
Do meu sofá eu vejo
Um oceano de homens
Vazios
E suas mães e meninas
Vazias
Dançando a dor na beira desta praia.

Mas Iemanjá dorme.

quarta-feira, 6 de abril de 2011

Ana e o Iluminismo

        Não, Jorge, não sei ao certo o que foi o Iluminismo. Porque embromar?
        Sei que foi uma época confusa do meu Ensino Médio. Aulas que faltei. Livros que não li. Professores que se contentavam com a minha escassa presença e eu que me contentava em, às vezes, lembrar os nomes deles. Iluminismo era alguma coisa com século das luzes, misturado com uma gente que se revoltou com os medievais, misturado com a minha revolta com os iluministas, misturados com o meu sono nas aulas. Eu sempre pegava algo entre “Teocentrismo” e “acorda, garota”, mas nunca consegui estabelecer uma associação entres estas frases. Desculpa, professora Célia.
        Lembro de ter sido o terror mental de muita gente. Gente que estudou anos e ganhava um salário de miséria pra me ouvir dizer que aquilo ali era uma merda, isso mesmo, vou pra casa tomar uns vinte válius e esquecer a maldita genética, os testes com as ervilhas, as ideias iluministas e a recessão de 29. Eu nem estava lá em 29, é pensamento de estudantes fracassado, mas é verdade, eu não estava lá. Eu nunca estive. Aliás, eu nem gosto de batata. (A história das batatas voadoras eu lembro). Desculpa, também, Luan. Sei que você deposita grandes esperanças em mim, mas eu sou assim, meio farsa, meio futuro brilhante.
        Então, Jorge, tira essa prova do professor Fabrício da minha frente. Eu não vou lembrar de nada, nem saberei responder as questões baseadas no texto acima e bla bla bla. Eu quero saber é do futuro, do que ainda escreverão sobre mim. Sim, porque criançinhas se apavorarão ao se verem obrigadas a lembrar do meu nome e das minhas poesias nas suas provas de português. Ou não. Alguém por aqui é capaz de prever o que virá? Os iluministas revoltados não imaginavam que um dia me deixariam numa nostalgia tão sinistra. Mas, por via das dúvidas, estudem meu nome, crianças. Nunca se sabe.

Incoercível

A gente dá a cara a tapa não sei quantas vezes e leva porrada. E senta no chão pra chorar, chora porque sente falta, chora porque quer que o telefone toque só pra gente deixar tocar. Chora pra esquecer e pra lembrar. A gente vira mistura de bolha de meleca, rivotril e música brega. Chora porque não tem jeito ou por ser o único jeito. E depois deita assim no travesseiro, oco por dentro. A gente ainda ouve um Cranberries (choro só vale com trilha e tudo), depois um cadinho de rock sinistro pra se sentir mais forte, mais duro, mais gente.
E ainda promete que nunca mais chora... mas cumprir que é bom nada! Porque o telefone toca. A gente não atende, mas o sorriso sempre surge, incoerente, incoercível, inquestionável. A gente chora tanto porque é besta, isso é fato.

E porque esse diabo de amor é coisa boa que só. 

quinta-feira, 10 de março de 2011

Outono

Se eu soubesse escrever poesia, descreveria tão somente o sorriso que andou comigo até bem longe, depois de tê-lo visto. Tanta palavra bonita pra dizer aqui nesta minha boca, e ele tão longe.
Não sei rimar seu nome com coisa alguma, não rimaria rima pobre, não pra ele.
E o sorriso some, e o sorriso volta, e o sorriso apaga.
Abro e-mail, abro celular, reviro gaveta. Ligo, desligo, desespero, tremo, grito.
Depois o nada. O nada reconfortante da minha cama, onde já chorei amores possíves e dores extremadas.
Onde já chorei até dormir.
Onde eu vou esperar respostas, que sempre chegam, sempre chegarão.

Eu sou uma grande besta, romântica, boba, apaixonada.

Eu ando tão assim, "em-ti-mesmada".

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Ártemis

Se eu tivesse seguido os conselhos de mamãe, não estaria nesta mesa agora.

Olho ao redor e tudo, tudo que vejo não pertence a mim. Mas foi comprado com o dinheiro que custo muito a ganhar, na forma sutil de impostos e outros tantos artifícios escusos que empobrecem os nossos homens de bem.
Trabalho com/para e contra o Governo.
Os conselhos da mamãe ressoam nesta sala.
Estuda, menina.
Seja alguém na vida, menina.
Queria poder ter um profile invejável, senhores.
Queria mesmo poder unir minha voz àquelas que tanto lhes causam furor.
Mas como o poeta não sou nada, nunca poderei ser nada.
E os senhores, inteligentes como são, sabem o final da poesia.
Tenho em mim todos os sonhos do mundo. E hoje é o dia da caça.
Curarão doenças? Cuidarão dos flagelados? Adotarão criancinhas?
Não, os senhores, donos do mundo, dormem.
Está tudo acabado fora desta minha linda mesa cinza cheia de coisas que nunca serão minhas.
Estudarei muito, senhores.
Eu que não tenho comissões pomposas nas suas atuações mirabolantes, senhores, estudarei até a morte.
Para que nunca me roubem aquilo que realmente me importa.
Para que nunca empobreçam meus homens de bem.
Para que nunca cuspam na minha linda mesa cinza, crendo-se deuses.

Senhores. Eu tenho o arco, a flecha e o alvo.
Estou pronta.

É uma pena que os senhores não saibam o que é lutar.