sexta-feira, 3 de junho de 2011

2 de Junho

Amigos. Daí morte cruel e fria aos sofrimentos não-louváveis.

             Tinha pressa. Em alguns dias eu me apresentaria numa cerimônia literária, precisava estar bem apresentada, ela queria me fazer um casaco azul. O evento era no dia de seu aniversário, ela não poderia ir, mas tenho certeza que seu coração não cabia no peito, de tanto orgulho.
              Entre linhas, botões e retalhos eu experimentava, passo a passo, a sua grande obra prima. Não era a última, pois antes de morrer ela ainda me fez o vestido de noiva, mas era a última obra que fazia sem o terror da doença que a matava. Ela sempre tinha pressa, suas costuras tinham dia e hora para estarem prontas, aprendeu a ser amiga e inimiga do relógio. Com tanta preocupação desnecessária, quase impossível viver. Ela apenas sobrevivia, e era exatamente nisso que eu estava pensando, quando ela quis que eu provasse novamente o casaco. Era a manhã do primeiro dia.
             Na manhã do segundo dia venceu a conta da loja de sapatos. Honesta que só ela, teve que inventar uns malabarismos de última hora pra não atrasar a conta, o dinheiro nunca dava. Ela não era vaidosa, só queria andar com a cabeça erguida, de quem conseguiu enfrentar a vida mesmo sendo mulher sem trabalho fixo e com duas marmanjinhas pra criar. Não tinha marido há algum tempo, meu pai, pobre mortal, não sabia viver com a responsabilidade de uma família nos seus calcanhares. Estranhei quando nessa tarde ela me pediu um batom e é com os olhos cheios de lágrimas que lembro disso agora.
             Dia seguinte ela disse que estava saindo com um amigo da família. Fiquei feliz, eu mais do que ninguém queria aquilo, desesperadamente. Nunca esquecerei dela, na frente do espelho, passando o batom marrom sem marca, vestindo uma blusinha amarela feita com suas próprias mãos. Nunca esquecerei que era eu quem pintava os cabelos dela e sempre acabava manchando alguma de suas blusas. É engraçado como tem coisas que a gente nunca esquece, mas que também nunca consegue lembrar, de tanto que dói.
             No quarto dia, sabendo então do seu segredinho amoroso, entendi o porquê dela ter comprado aquele sapato. Queria estar bonita. Nesse dia ela sentiu umas dores fortes, mesmo assim continuou a costurar o casaco, fez os retoques finais, eu fui pra cerimônia. Preocupava-me com ela, mas hoje vejo o quanto eu me prendia a coisas banais, sem aproveitá-la como deveria. Você, que está me lendo aí, do outro lado da tela, talvez não me conheça ou talvez me conheça mais do eu mesma julgo conhecer. Mas posso afirmar que sua vida é movida à base de sonho, não é? Mesmo os mais distantes, os mais aflitos... são sonhos. Sinto dizer que meu maior sonho, hoje, é acordar amanhã de manhã e ouvir a voz dela. Sentir seu cheiro, beber seu café. Poder sorrir e dizer que tive um sonho louco essa noite, que no sonho ela tinha morrido e então eu nunca mais veria seus olhos tão doces. Sentar na cadeira, do lado da máquina de costuras e conversar, conversar muito, conversar bastante, até doer à garganta, até a boca ficar dormente, até os vizinhos reclamarem. Ouvir sua voz até a cabeça doer de tanta felicidade, mas não vai acontecer. Então eu vou à Leader Magazine, compro uma roupa nova, saio à rua como se tudo estivesse bem, mas nada está bem. Eu vivo pela metade, desde o dia em que o corpo dela morreu.
              No quinto dia o corpo dela doeu tanto que não conseguiu levantar-se da cama. Corre hospital, posto de saúde, farmácia. E dá-lhe médico grosso, enfermeira estúpida, injeção na bunda. Nada curava a dor dela. Nada a fazia sair da cama, ela nunca mais andou. Ficou até meio morta, um tempo, num hospital longe de casa. E quando voltou pra casa, parecia criança voltando do terrível primeiro dia de aula. Quando falo de sofrimentos não-louváveis, falo dos dias em que eu me preocupei mais com minhas noites mal-dormidas do que com os gemidos do quarto ao lado. Falo das pessoas que reclamam das calças sujas de lama, quando tudo o que ela queria era pisar na lama uma vez mais, ao menos. Falo das brigas bestas de namorados imaturos, quando lembro dela pedindo meu batom emprestado, porque ia sair pra namorar, viver. Falo de mim mesma, escrevendo essas coisas tristes, quando tem tanta gente por aí com história mais triste, sem ter nem mais força pra contar.
              Dá para perceber que os dias são simbólicos, certo? É só uma maneira de organizar essa novela mexicana que o obrigo a ler, caro leitor. Meu choro está exatamente nas entrelinhas que guardo em mim, nas palavras que eu não disse, nos agrados que eu não fiz, na rima que não sai no poema. O “sexto” dia é tão cheio de dor que estou em dúvida se conto ou não.
              No sexto dia eu a tratei na boca, como criança. E dei banho. E limpei bumbum. E contei história. E chorei igual condenada. E se fosse hoje faria de novo, mas faria melhor e sempre com sorriso no rosto. Porque a imagem que ela levou de mim é a de uma mulher triste, cansada e sem esperança.
              O sétimo dia, 2 de junho, não amanheceu pra ela.

              Estes sete dias, na verdade, foram meses de dor e coragem. Luta e perseverança, fé e mais todos os sentimentos bonitos que a gente lê nos cartões de Natal. Ainda hoje não está pago o sapato. Sei que ela deve estar se revirando no túmulo, onde já se viu deixar a mãe inadimplente, mas algo me faz não conseguir entrar naquela loja. Gosto de imaginar que ela ainda vai voltar, costurar uns vestidos e pagar a maldita conta. Aliás, me agarro a qualquer motivo pra imaginar que ela vai voltar. Eu ainda choro toda noite, antes de dormir. Ainda ouço seus gemidos, ainda a vejo sentindo sede e vai ser sempre assim. Gosto de vê-la com o batom que lhe emprestei e com a camisa manchada de tinta, que eu dei a ela, no dia das mães.
              E você, amigo, você bem sabe que algum desses 365 dias do ano também não amanhecerá pra alguém que você ama. Então pra que brigar pelos 15 minutos de atraso? Por que esconder da mãe as incertezas colhidas dia-a-dia? Nunca se sabe quem está partindo. Nunca se sabe quem ficará para contar história triste, no final das contas.
              Minha dor, hoje, o oitavo dia, é a de quem espera com ansiedade um dia que nem mesmo sabe se vai chegar. Dor de quem está louca pra chegar em casa, correr pro quarto e dar um beijo na mamãe.

              †Ana Maria da Silva
              07/07/1957 – 01/06/2007